sábado, 7 de maio de 2016

Teoria do Cansaço Por Fernando Buen Abad Dominguez

Portugal 2016:

Teoria do Cansaço


Por Fernando Buen Abad Dominguez
(tradução Lia Amaral)

A “fadiga” é um delito de lesa humanidade.

A “fadiga” é um desses expedientes burgueses para nos escamotear a vida.

Não há nada que mais nos “canse” que o peso do capitalismo sobre os nossos ombros. Em quantidade e qualidade, minuto a minuto, o capitalismo é uma máquina trituradora de seres humanos exaustos. Concretamente, nenhuma das definições “oficiais” do “cansaço” – ou da “fadiga” – (“esgotado”, “queimado” ou síndrome de burnout)* conseguem expressar a repercussão física e psicológica que exerce sobre a classe trabalhadora, o modelo desapiedado de exploração aperfeiçoado sistematicamente pelo capitalismo, como tortura de classe convertida em grande negócio. Mas “fadiga” não é sinónimo de derrota. “A acumulação da riqueza num extremo – escreveu Marx sessenta anos antes de Sombart* – tem, como consequência, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, trabalho sofrido, escravidão, ignorância, brutalidade e degradação mental no extremo oposto, ou seja, na classe cujo produto do seu trabalho se converte em capital”. Leon Trotsky [1]

Com frequência, o cansaço manifesta-se pela impotência e desespero. Não são raras as vezes em que falece a coragem e, extenuados por jornadas irracionais de trabalho, sucumbimos à apatia, fugindo à realidade. Os sinais de cansaço são sempre um registo contraditório que o capitalismo anota, feliz da vida, vendo-nos sem capacidade para o golpear onde deve ser golpeado. A fadiga que o capitalismo inocula é também uma arma de guerra ideológica, um aparelho criminoso que incorre em delitos de lesa humanidade de todo o tipo, não tipificados. A fadiga é, precisamente, uma das formas criminosas de limitar a mente.

Não se trata de qualquer “cansaço” comum ou conjuntural. Não se resolve com “repouso”, “descanso” ou “férias”. Não se trata de “isso” que passa com divertimentos ou entretenimentos de farândola. Não se trata com sedativos, massagens nem com atividades de “spa” ou fitness laboral*”. É uma depredação, uma degradação física e psíquica que debilita e mata. Uma degeneração que atordoa, que aliena e embrutece os seres humanos que deveriam, através do seu trabalho, esclarecer-se, emancipar-se e desenvolver-se em felicidade. É, em suma, uma doença progressiva e mortal do corpo e da alma.

Uma definição insuficiente, dir-se-á: “ – O que se entende por fadiga? Na terminologia médica, é o aparecimento precoce de cansaço uma vez iniciada uma atividade. É uma sensação de esgotamento ou dificuldade para realizar uma atividade física ou intelectual que não se recupera com um período de descanso."[2Muitas fontes dão-nos conta de diagnósticos e terapias confusas – em palavreado médico – sem esclarecer e, pior ainda, desconhecendo-se os tratamentos. Fazem-se malabarismos com o conceito “fadiga crónica” apenas para se concluir que nada sabe… até hoje. Não obstante, a “fadiga” causada pelo capitalismo, não está na mira de certa “medicina” reducionista e encharcada em individualismo e a-historicidade aguda. Os trabalhadores sabem muito mais. São os que mais sabem…ainda que, por vezes, sem o compreender. Nem ”fadiga crónica”, nem burnout, nem outro eufemismo, mesmo com as suas virtudes diagnósticas, servem para solucionar um problema social e histórico que se invisibiliza com espessas capas de indiferença e indolência sob o peso demencial da exploração de seres humanos individual e coletivamente.

Democratizar o descanso não alienado

A burguesia, com o seu conceito de “descanso”, exibe, obscenamente, os seus antídotos contra a “fadiga” que funcionam como sistemas de exclusão e maus tratos psicológicos aos olhos dos trabalhadores. Os valores decadentes contidos como chave do “prazer” burguês, poucos os podem pagar. Possuem hotéis em praias usurpadas, em montanhas sequestradas e em todo o lugar ou paisagem onde as jornadas extenuantes se “esquecem”. Têm mão-de-obra escravizada para os alimentar, massajar e embriagar. Têm, para si e os da sua classe, transportes ricos em comodidades e dinheiro para encontrar “férias” e “relax” que só podem ter graças à “fadiga” de milhares de trabalhadores que, extenuados, nunca poderão disfrutar de descanso real. «…O que o trabalhador vende, não é diretamente o seu trabalho, mas sim a sua força de trabalho, cedendo temporariamente ao capitalista o direito dela dispor… Tomás Hobbes, um dos mais velhos economistas e dos filósofos ingleses mais originais, já viu, instintivamente, esta questão no seu Leviathan, à qual todos os seus sucessores não deram a devida importância. Hobbes disse: “Como em todas as coisas, o que um homem vale ou o que se crê que valha, isto é, o seu preço representa o que se daria pelo uso da sua força.” [3]  K. Marx

As nossas forças de produção estão cansadas. Está fatigada a nossa paciência, a nossa razão, a nossa lógica e sensatez ante um sistema absurdo, criminoso e genocida. Esse fardo de absurdos e aberrações que o capitalismo dejeta diariamente tem-nos extenuado e tornado irrascíveis. Mas não estamos derrotados porque a força do proletariado mundial está a organizar-se progressivamente. O problema é que, além disso, a luta contra o lastro e os estragos da “fadiga” fazem-nos perder tempo e entrar com frequência no desespero.

A principal causa da “fadiga” gerada pelo capitalismo é o trabalho alienado e alienante. – Isto é óbvio? Talvez. Alguns dados da OIT (Organização Internacional do Trabalho) indicam que, mundialmente, 29% dos trabalhadores não dorme o necessário para desempenhar as suas tarefas. A “fadiga” é a causa do envelhecimento precoce, esgotamento emocional, despersonalização e baixa autoestima. O trabalho extenuante e alienante está relacionado com o “stress” e com doenças cardíacas, dores de cabeça, sono difícil, desordens gastrointestinais e recrudescimento de problemas de saúde já existentes. Além do mais, uma pessoa extenuada sofre, descontroladamente, insatisfeita com a duração ou a qualidade da sua própria vida, para além da angústia diária que sente em conciliar o sono, despertando a meio da noite muitas vezes em sobressalto. Estes sinais apresentam também sequelas diurnas que provocam mais “cansaço”, “fadiga”, sonolência, baixo rendimento, mudanças de humor e mal-estar social, enquanto o relógio do patrão segue, ameaçador. E os salários, cada vez mais, dão para menos.

Basta-nos ver diariamente pela madrugada os trabalhadores arrastando a sua “fadiga”. É vê-los amassados em “transportes” miseráveis que carregam os seus corpos extenuados até às masmorras “produtivas” onde o sistema os espreme dia e noite. É vê-los com o cansaço emaranhado nos pés a caminhar pelas ruas e avenidas onde se amontoa a fadiga feita sujidade hedionda entre paisagens de lixo e abandono. É ver esses milhões e milhões de rostos sonolentos, esbofeteados pelo amanhecer, filhos da exploração e órfãos da justiça. É bem visível o modo como a fadiga derruba vontades e amansa vidas, aturdindo-os com resignação rotineira.

Quem sofre a “fadiga” reage, ante estímulos menores, com atitudes e sentimentos antipáticos para consigo e para com o seu trabalho. A OIT em 1999 definiu o conceito de “trabalho decente” como aquele que “consiste nas aspirações das pessoas durante a sua vida laboral. Significa contar com oportunidades de um trabalho que seja produtivo e que produza uma remuneração digna, segurança no posto de trabalho e proteção social para as famílias, melhores perspetivas de desenvolvimento pessoal e integração na sociedade, liberdade para exprimir as suas opiniões, organização e participação nas decisões que afetem as suas vidas, e igualdade de oportunidades e tratamento para todas as mulheres e homens”.[4] Estamos tão longe!

Quando se trabalha, o descanso devia processar-se em felicidade e sem constrangimentos. O descanso não devia estar associado apenas a “férias”, sem aversão pelas  tarefas produtivas ou criadoras a não ser que estas façam parte da avalanche alienante que o capitalismo impõe. Em todo o caso, o descanso pleno e vivificante é um conceito que não conhecemos ainda na sua dimensão como processo anti-fadiga e anticapitalista. Em qualquer caso, “descanso”, mental e físico, não significa “inatividade”, esse é o sentido que a burguesia lhe dá por hedonismo de autocomplacência. Pelo contrário, o descanso deveria ser uma atividade desalienante e social para se usufruir de uma vida plena. A arte, o exercício, o convívio despreocupado e o ócio poderiam ser ferramentas muito úteis, dado que, felizmente, o descanso desalienado e desalienante permite um sono tranquilo, o quebrar das angústias, a reparação de todas as forças, a vontade de amar e de se associar com os outros na resolução dos problemas diários. Mas tudo isso é impossível no capitalismo.

Só podemos lutar, sem descanso, se a moral da luta está sã e salva

Não imaginamos ou nem conseguimos imaginar os estragos provocados na vida quotidiana pela quantidade de fadiga que, ignorada ou desafiante, visível ou invisível, carregamos nos ombros diariamente. Essa “fadiga”, incluindo a mais silenciosa…  expressa o chicote permanente do capital contra o trabalho que não tem saídas, paliativos, cura nem descanso. Carregamo-lo nas orelhas e na comissura dos lábios. E disso também estamos cansados. “Em que consiste então a alineação do trabalho?  O trabalho é  externo ao trabalhador, ou seja, não pertence ao seu ser; no seu trabalho, o trabalhador não se afirma, nega-se; não se sente feliz, mas desgraçado; não desenvolve uma energia física livre e espiritual, e pelo contrário mortifica o corpo e o espírito. Por isso o trabalhador só se reconhece fora do trabalho, e no trabalho, fora de si. Sente-se liberto quando não trabalha e quando trabalha, prisioneiro. O seu trabalho não é voluntário, mas é trabalho forçado. Por isso, não é a satisfação de uma necessidade, mas somente um meio para satisfazer as necessidades fora do trabalho. O seu caráter estranho evidencia-se claramente no simples facto de que a não existência de uma coação física ou de qualquer outro tipo leve à fuga do trabalho como da peste. O trabalho externo, o trabalho em que o homem se aliena, é um trabalho de auto sacrifício, de ascetismo”. Marx [5]

É urgente averiguar todos os significados e os sentidos verdadeiros e ainda ocultos da “fadiga”, e enuncia-los de todos as maneiras. Isso é o que realmente pretendemos…É preciso trabalha-los porque operam como lava derretida que petrifica todas as suas metástases. Deixa marcas nos rostos, nos estados de alma, na postura corporal, nas costas e nos músculos… deixa a sua marca na memória, nos sonhos e nos sentimentos. Destroça abraços e beijos. Contamina amores e paixões, aspirações e projetos. Tritura, entre as suas veias pétreas, muitas vontades de viver e de lutar. Essa é a sua tarefa e cumpre-a de todas as maneiras e em mais de uma época.

Nem sempre são visíveis os estragos causados a um trabalhador exausto, que muitas vezes os oculta com eficácia, ou se lhe ocultam, em plena voragem da exploração. Ao chegar a casa, saltam os demónios e espalha-se incontida a fadiga do dia e a acumulada, destilada pela crueldade… e não há lugar de repouso, nem nos sonhos. Quando, aparentemente, estamos a descansar, a “fadiga” torna-se, perversamente, invisível. Instala-se, vive connosco e em nós. Vai e vem como ser parasitário alimentando-se das nossas vidas e das vidas daqueles com quem convivemos. A “fadiga” transpira-se e exala de muitas maneiras, inundando a realidade com o seu bafo desmobilizador. O mais penoso é o choque de fadigas invisíveis, carregadas por trabalhadores que, sob os seus próprios escombros, tragicamente, disso não se apercebem justamente por estarem demasiado cansados.  “Mas a verdade é que estão tão extenuados, devido ao excesso de trabalho, que se lhes fecham os olhos de cansaço”. Marx

Mas também é possível que, de estádios agudos de fadiga, emerja, dialeticamente, o seu contrário e consiga, aliando-se a outros, num salto de quantidade e qualidade, rumar a uma luta emancipadora contra o cansaço. Não são poucos os casos, e é verdade que esse é um dos grandes e valiosos mistérios que a humanidade acolhe no seu ser social como promessa esclarecedora capaz de nos fazer sair triunfantes, dos momentos crus e difíceis, por mais cansados que estejamos. Tem-se visto, muitas vezes, a energia dos trabalhadores e povos em luta mesmo após terem permanecido submetidos a largas e terríveis etapas de derrotas e cansaços. Temos visto como, com um programa correto e num momento correto, a teoria e a prática demonstram a sua indivisibilidade e, transformando-se em força organizada, com direção revolucionária, ser capaz de animar corpos e almas, embora, um pouco antes, tenham parecido aparentemente derrotados. Essa é a magnificência da luta.

Em nenhuma circunstância, o trabalho devia ser uma atividade que lesiona as pessoas pelo cansaço físico ou intelectual. Nas condições atuais do capitalismo em crise, o trabalho, ou seja a força de trabalho que se vende para a sobrevivência, produz, além de miséria e frustração irreversíveis, momentos de fadiga que atordoam e embrutecem os trabalhadores, Em face disto, não há ciência, legislação nem programa político que defenda, objetiva e subjetivamente os trabalhadores. Bem pelo contrário, a “fadiga” como ferramenta da ideologia da classe dominante, é usada para esmagar a inteligência dos povos e torturar psicologicamente as massas. Tudo isto, impunemente.

Ao fim do dia, da semana, do mês… e no fim das suas vidas, os trabalhadores convertem-se em sacos inúteis repletos de “fadiga” contagiosa, convertida em doenças, invalidez e morte. Esse é o sinal dos tempos e do capitalismo em decomposição e é o sinal da luta organizada palmo a palmo. Por isso, as Revoluções socialistas são injeções de vida e de energia para mulheres e homens que percebem os efeitos curativos da luta contra a fadiga e contra todos os seus colaterais venenos. Será só muito depois de derrotarmos o capitalismo que se extinguirão os últimos restos de fadiga histórica que a burguesia nos infligiu durante séculos tentando destruir-nos. A limpeza não será fácil, nem será rápida e dependerá do potencial criativo, da força de amar e amarmos, da magia de rir e sorrir inspirados pela alegria que emancipa… e dependerá da organização e da persistência na multiplicação das lutas com que saibamos ativar as forças anticapitalistas vitais, reparadoras e superadoras… das quais necessitamos para viver bem, de corpo e alma. 

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